2003-10-19

DEBATE ... A PROPÓSITO DA BOLÍVIA!

Manuel Baptista, do colectivo A BATALHA e do fórum Assembleias Anti-Capitalistas, enviou o seguinte comentário crítico:
João Pedro Freire,

Li o teu interessante artigo e gostava de apontar algumas reflexões, não
propriamente críticas em relação ao que dizes, mas em relação ao contexto
todo em que isto se desenvolve.
É certo que existe um paralelismo, e não por acaso, entre a Argentina de
Dezembro de 2001 e da Bolívia de agora.
O processo na Argentina mostrou como a impossibilidade de uma facção da
oligarquia continuar a exercer a repressão, como mandatária directa dos
seus verdadeiros patrões (FMI, Banco Mundial, imperialismo dos EUA, foi
resolvida.
O "que se vayan todos!" transformou-se em "que se vayan quasi todos..." ou
seja abriu-se caminho para uma substituição de pessoas, mantendo o sistema
político intacto, a ordem constitucional, etc.
Isto é muito importante, porque está infelizmente em vias de repetir-se,
com mais ou menos variantees de pormenor, no caso boliviano.
É de assinalar que nenhum problema sério da Argentina se resolveu ou
começou a ter solução; apenas se reconstruíu a capa institucional que
permite fazer passar a continuação da ditadura do FMI, disfarçada por
interposta pessoa no peronismo "patriótico" de Kirchner.
Então aquilo que torna estas insurreições incapazes de chegar a uma mudança
profunda da sociedade (ou seja a transformarem-se em processos
revolucionários, no sentido verdadeiro da expressão) é antes de mais a
persistência da ilusão do poder nas massas.
Assim, como ainda não é compreendido pelos trabalhadores (com salários de
miséria ou desempregados, vivendo da "economia informal") que a
substituíção de um modelo de poder por outro gera - mais tarde ou mais cedo
- uma nova opressão, as insurreições não são acompanhadas por ensaios de
uma organização nova da sociedade e da política.
As pessoas desses países experimentaram na carne os "benefícios" do
liberalismo, mas não atingiram ainda o grau de consciência e da
auto-confiança que lhes permita criar e desenvolver plenamente novas
instâncias -operacionais- para desempenhar as tarefas de coordenação e
sobretudo, anulando e inviabilizando os órgãos e estruturas de poder
anteriormente instaladas. As assembleias de bairro na Argentina, os
sistemas de troca directa, as organizações de "piqueteros", são esboços no
bom sentido, mas ainda muito longe de se transformarem num verdadeiro novo
modelo de sociedade mais horizontal, mais próximo das necessidades
colectivas, que solicita a participação activa na decisão e execução de
todos e de todas.
A lição que tiro é a seguinte: não basta desenvolver processos antagonistas
que num determinado ponto de confronto possam conseguir o derrube dos
agentes do poder imediatamente responsáveis pelos males, é preciso em
paralelo - pela prática continuada no seio do movimento social- desenvolver
práticas de participação e democracia directa, a todos os níveis, uma
cultura assembleária, horizontal, de auto-gestão dentro dos colectivos
constituídos... práticas essas que apenas os grupos libertários têm tentado
(com erros, claro) levar a cabo, nas sociedades ocidentais contemporâneas.

A resposta de João Pedro Freire, de TRIBUNA SOCIALISTA:

Caro Manuel Baptista,

"Então aquilo que torna estas insurreições incapazes de chegar a uma mudança
profunda da sociedade (ou seja a transformarem-se em processos
revolucionários, no sentido verdadeiro da expressão) é antes de mais a
persistência da ilusão do poder nas massas."


Na Bolívia e na Argentina (como em outros locais e ocasiões que a História
vai registando) as revoltas populares raramente têm passado a revoluções com
"principio, meio e fim"! O capitalismo pode formar pessoas revoltadas, mas,
infelizmente, revolucionários são poucos. É aqui que sou de opinião que o
factor subjectivo, i.e. a consciência da necessidade de
organização/coordenação, entra na ordem do dia. Nem me refiro a uma
"vanguarda" no sentido leninista do termo. Acredito que nos nossos dias é
possível criar uma organização com uma coordenação que possa continuar no
tempo a inicial capacidade espontânea dos movimentos que exprimem revolta
popular.
Nesta luta contra a globalização liberal - a qual não é própriamente
abstracta ou um fantasma, tem organização, tem direcção, tem política e tem
força militar - a necessidade de definição de uma alternativa internacional
com organização, política e direcção não deve ficar remetida para meia dúzia
de "vanguardistas" ainda por cima herdeiros de responsabilidades monstruosas
ao longo da História.
Continuo a pensar que há um perigo latente na história recente do movimento
anti-globalização liberal ou até nas revoltas que a Argentina e a Bolívia
conheceram e conhecem: é o cansaço de quem se revolta por falta de
alternativa CONCRETA e é a capacidade do liberalismo para incorporar as
respostas difusas que essas revoltas originam. Por exemplo na Bolívia, a
capacidade popular que provocou a demissão de um Presidente deu origem, tão
somente, à sua substituição pelo seu Vice-Presidente (!!) que já iniciou o
processo de tentar "quadrar o circulo" tentando conciliar um Parlamento (que
só se representa a si mesmo) com uma revolta popular que teve que criar um
autentico contra-poder à ordem reinante!!
Na minha opinião, a questão da organização e da coordenação de uma
alternativa é URGENTE e VITAL!

Um abraço e saudações fraternas,
João Freire

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